quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O barulho da reforma

Quando eu era criança e passava a tarde em casa, lembro de tomar lanches deliciosos, beber toddy no final da tarde, assistir aos desenhos animados e lembro, sobretudo, do barulho da reforma que sempre havia, no andar de cima, ou debaixo, ou na obra da rua da frente.
Os apartamentos, as ruas, estão sempre com alguma obra e, portanto, há sempre algum barulho a ser feito.
Mas eu cresci e, desde que passei a trabalhar o dia todo, esqueci-me do tal barulho da reforma, que só se ouve quando passamos um dia útil em casa.
Fui lembrar do fato quando ficava doente ou quando, por alguma razão, não ia trabalhar. Assim acabei por associar a infância - ou o não-trabalho - ao barulho da reforma.
Agora, enquanto a minha pequena menina chora, ouço as batidas do andar de cima, o tempo todo, todo santo dia, sem cessar. Meu marido não sabe, os outros trabalhadores que moram aqui não sabem, meus colegas de trabalho não sabem, somos apenas nós duas que estamos num lugar que deveria estar vazio em dia útil. Apenas eu e ela a ouvirmos o barulho insistente da reforma e, assim, notarmos que somos minoria.
Quem ouve o barulho da reforma são as mesmas pessoas que assistem Mais você, Sonia Abrão, TV Globinho, e sessão da tarde. Só ouve o barulho da reforma quem não ouve o burburinho do escritório, a falação dos restaurantes, o barulho alto da vida lá fora.
Ouve o barulho da reforma quem está um pouco longe de tudo, ausente do mundo, isolado da civilização – tão incivilizada
Ouvimos o barulho da reforma quando vivemos em uma espécie de ilha, a ilha do silêncio, do choro, das fraldas, dos programas reprisados, do sol nascendo e se pondo, tão repetidamente, todos os dias.
Ouvimos o barulho da reforma, eu e minha filha e, logo, noto que em breve será a vez dela criar as próprias lembranças. Ela se lembrará de sua infância que ainda nem chegou e terá associações parecidas com as minhas. Talvez. Ela irá se lembrar do Toddy que ainda vai tomar, dos desenhos animados que vai assistir, e do barulho da reforma que ela já ouve, junto comigo, sem nem saber do que se trata...

2 comentários:

  1. Um texto tão bom que merecia ir para o Crônica do Dia. Fiquei pensando quais barulhos me remetem às tardes da infância e descobri vários. Mas mais do que barulhos, tenho lembrança de sensações.
    Grande beijo

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