sexta-feira, 23 de março de 2012

Mãe bem resolvida >> Kika Coutinho

Toda mãe se sente culpada. Ou por todos os dias, ou por alguns deles. Mas sente. Toda mãe carrega consigo, pela vida toda – eu arrisco dizer – os erros cotidianos, os pequenos, os grandes, as interpretações enganadas, as precipitações, os tropeços todos. Dentro desse balde de culpa, que pesará algumas toneladas, sempre teremos as grandes, as inesquecíveis, aquelas que nos acompanharão em anos de terapia, e pelas quais nunca nos perdoaremos. Eu, com menos de dois anos de maternidade, já tenho uma séria candidata ao Oscar da maior culpa de todas, e começou numa madrugada de calor.

Eram 3 horas da manhã quando Sofia me chamou pela segunda vez. De novo?, penso, levantando. “Já vai, Sofia...”, murmuro, caminhando para o quarto dela. Abro a porta:

– O que foi filha?

– Dormi a noite toda – ela diz, feliz.

– Não dormiu nada, filha, tá de noite ainda, deita e dorme – eu digo, quase saindo do quarto.

– Mas, mamãe, Sofia tá dodói – ela tenta essa.

– Onde tá o dodói?

– Aqui ó – responde ela, apontando a perna, depois a cabeça, depois a barriga.

– Sei – digo, já cansada dessas invencionices, enquanto emendo: – Filha, tá tarde, você vai dormir e pronto. Deita na cama agora.

- Mas, mamãe...

– Não tem “mas”, Sofia, deita na cama agora – Ela deita, eu deixo o quarto e, quando começo a adormecer, menos de 10 minutos depois, ouço o mesmo grito:

– Mamããããe – respiro fundo e murmuro para o meu marido: – Chega, vou deixar chorar – Ficamos em silêncio enquanto ela berra por uns 5 minutos.

Escuto que tenta abrir a porta, se desespera mais, grita um monte de coisa sem sentido e tosse. Que tosse forte, eu penso, firme. Do travesseiro ao lado, ele me olha em dúvida, mas eu insisto: Não, não vou ceder, ela tá forçando a tosse, claro. O tempo passa. Ai, quanto grito, será que vou? Não, não vou, chega, ela precisa aprender. Olho o relógio de novo, 3:35, desejo que meu marido me peça para ir, alguém me obrigue a ir até aquele quarto que eu não aguento mais, mas jurei que ia deixá-la chorar até dormir, ela tem que aprender, não vou, pronto!

São 3:40, levanto da cama pisando firme e, antes de abrir a porta já começo a falar, no auge do nervosismo:

– Chega, Sofia, vai dormir e pronto, chega! – quando abro a porta, no entanto, ela aponta para a caminha, dizendo:

– Olha mamãe, olha! – sinto meu coração gelar quando vejo a cama TO-DA VO-MI-TA-DA.

Com o pijama molhado, o quarto sujo, e aquele cheiro insuportável, começo o meu processo de autopunição:

– Meu Deus, como eu não percebi, filha, você vomitou, porque não falou pra mamãe que estava dodói? Ai, você falou, que idiota eu que não vim antes. Sofia, o que aconteceu?! – eu digo, pegando- a em meus braços e tentando explicar a ela, que nunca havia vomitado antes, que aquilo acontece.

– Vem, vamos tomar um banho, vem! – Mas ela me olha assustada, sem entender bem o que aconteceu, continua apontando e dizendo:

– Olha, olha mamãe, olha! – Para ela, aquilo é mais do que incômodo, é um feito e tanto, algo novo e incrível, ela não se cansa de me mostrar...

Enquanto encho a banheira, meu marido busca um pano, tem de limpar o quarto, tirar essa roupa de cama, a noite está só começando...

Damos o banho na nossa pequena, que volta a vomitar, de novo e de novo, várias vezes, até que ligamos ao pediatra e ele passa a medicação. “Filha, o papai vai até a farmácia, vamos esperar um pouco”, eu explico, ligando a televisão e fazendo força para acreditar que era apenas uma virose – o que veio a se confirmar alguns dias depois.

Enquanto assistia o sol nascer, naquela manhã de sexta-feira, ao som da Galinha Pintadinha, notei que eu nunca seria uma mãe bem resolvida como cheguei a sonhar. Não existe essa coisa de mãe bem resolvida, que tolice, digo para mim mesma, tentando endireitar as costas, que inclinam sob o peso da culpa.

Hoje, já acumulo algumas toneladas pelos erros e tropeços cotidianos. São muitos, enormes e pequenos, dia após dia. Enquanto ousamos educar, erramos...

Mas não há de ser nada, penso, enquanto assisto-a crescer cheia de saúde e alegria. Vão ser essas e outras que farão da minha menina uma mulher forte, afirmo para mim mesma, sem muita convicção – dando uma de mãe bem resolvida, claro...

Fonte: Crônica do Dia: Ana Coutinho

Um comentário:

  1. Infelizmente esquecemos que somos humanas além de mãe. E cometemos erros, muitas vezes não são tão " erros" apenas deslizes sem grandes consequências. Mas como todo humano, nos culpamos!
    Faz parte, um dia quem sabe aprendemos!

    E tomara que a pequena tenha melhorado.
    Beijos

    www.parabeatriz.com

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