segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O prêmio

Escrito em 1o de agosto. Sobre um prêmio que, dia seguinte, ganhei, orgulhosa...

Tínhamos uma filha de alguns meses, 9, 10, quase um ano, enfim.

E, não sei por que, falávamos de ter mais filhos. Ele, disfarçando a resistência, dizia que, claro, mais pra frente, quem sabe e tal. Eu, firme, argumentava que o “mais pra frente” até tudo bem, mas queria mais duas crianças, para pelo menos completarmos três. Era um papo descontraído, nenhum acordo seria firmado e ninguém estava no cartório. Éramos um casal novo, passeando com carrinho de bebê pelo bairro, em um final de semana de sol.

De repente, cansei de enrolar e inventar argumentos. A verdade nua e crua era uma só, e eu tinha que dizer:
- Amor? Quer saber? Eu preciso ter mais filhos e pronto.
- Como assim? – ele respondeu, intrigado.
- Olha, eu sonhava em viajar pra África, cuidar dos pobres, sonhava em descobrir a cura de qualquer coisa, ser astronauta, magnata ou presidente, e já não fui nada disso.

Ele começou a andar mais devagar, atento. Enquanto eu continuava:
- Eu queria fazer coisas grandiosas da minha vida, mas, veja, fiz uma filha. Se fosse pra não ter filhos, eu queria no mínimo, veja bem, no mínimo, um prêmio Nobel. Preferencialmente, da Paz, que tem sempre aquele tchan, né?

O silêncio ocupou um espaço entre nós, quando ele sorriu. Mas eu não achava graça. Era tudo muito sério:
- E olha só, Amor, eu não fui Nobel, nem vou ser. Também não vou parar em Hollywood, e a verdade é que não me apetece, porque isso tudo é meio ridículo. Quero filhos. Quero parir pessoas, assistir um bicho crescer dentro de mim, pari-lo com ou sem dor, que a mim tanto faz. Quero ensinar como se segura uma colher, como se equilibra no meio-fio, como se desce no escorregador. Quero, quem sabe, ensinar alguém a falar "obrigada", "por favor", "me desculpe". Quero ser responsável por passar para uma outra pessoa qual o valor da risada, do domingo, do dinheiro e dos livros. Isso sim é grandioso, isso é que eu posso fazer ainda, pela vida, pela humanidade, pela espécie, entende?


Meu marido não me respondeu, mas eu notei que esboçava um sorriso, calado, enquanto empurrava o carrinho da nossa pequena filha. Respirei fundo, sugeri um sorvete na padaria e ele topou. Era um bom sinal...
Hoje, cerca de nove meses depois, foi dessa conversa que me lembrei quando o médico anunciou, ainda com o ultrassom na minha barriga: “Amanhã. Tem de nascer amanhã”.

Um frio me percorreu a espinha e eu tive, de novo, a impressão de ter sido premiada com algo muito maior que o Nobel da Paz. Levantei-me da maca com a ajuda do meu marido, que me segurou firme pela mão. “Amanhã”, ele repetiu me olhando, compartilhando daquele frio na espinha, daquele misto de alegria e susto, excitação e pânico, uma tempestade doce e intensa, que só aqueles que fizeram coisas grandiosas, grandiosas mesmo, puderam conhecer.

Amanhã nascerá em São Paulo uma menina, nossa segunda filha. E o Nobel da Paz nunca me pareceu tão ridículo...

Fonte: Crônica do Dia: Kika Coutinho

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